quinta-feira, junho 03, 2010

Aprendendo a lição

A professora bateu no quadro negro. Impacientava-se em ter que repetir a lição, por causa daquele aluno, tantas vezes. Como podia aquele menino, vindo de boa família, com pai letrado e mãe estudada, ter tanta dificuldade de aprender. Não havia assunto que ela não tivesse que repetir. Mas o que mais a irritava era que depois da canseira que o menino lhe dava, sem nada entender, quando ela se deixava mesmo vencer pelas dificuldades do tonto, já estando em outro ponto, ele repetia, repentinamente, tudo o que a professora havia lhe ensinado horas atrás ou no dia anterior. Era como se cada novidade levasse um tempo próprio e caprichoso para ser compreendida.
Não era incapaz o menino, mas não adiantava querer que ele aprendesse o que lhe era ensinado, do mesmo jeito que as demais crianças da classe. Outras professoras haviam tentado gritos, castigos, punições. Até beliscão o moleque havia ganho, para ver se acelerava o processo de aprendizagem. Nada acontecia. Com castigo ou sem ele, o dito só se decidia a entender o que lhe explicavam a seu próprio e particular tempo. A atual professora, sabendo do fato, tentava poupar a si mesma e a ele de desgastes maiores. Irritava-se, é verdade, com a repetição que se sentia na obrigação de fazer. Como boa professora, custava-lhe aceitar que uma criança na turma não alcançasse sua explicação.
Bastava render-se ao fato inexorável de que aquele guri era diferente dos demais que a aula transcorria bem, não fosse a repetição que ele resolvia fazer do aprendizado efetuado, em meio a assunto totalmente diverso daquele que acabara de assimilar, sabe-se lá por que instrumento de raciocínio. A impressão que se tinha, nesses momentos, era que todas as ideias que ele ouvia ficavam transitando em sua mente sem pressa, com vagar, até que achassem uma organização. Quando arrumadas em seus devidos lugares, dava-se o aprendizado, e aí ninguém tirava aquela ideia da cabeça do moleque.
Nos testes, o menino surpreendia. Só por isso, os colegas o toleravam. Sabiam que ele não era “burro” e suas notas faziam inveja às mocinhas estudiosas da classe, e provavam que o aprendizado, de fato, acontecia. Na hora da aula, alguns não conseguiam evitar as brincadeiras depreciativas, mas o menino também demorava para entender a crueldade dos colegas. Geralmente, era em casa que sentia a dor de não pertencer ao grupo, de não ser igual. Com 12, 24 ou 48 anos, poucas pessoas sustentam-se com dignidade sobre suas peculiaridades, ainda mais quando elas alijam-nas de algum grupo.
Quando dava-se conta da maldade alheia, ele chorava. A mãe o surpreendia várias vezes com as mãos no rosto a esconder as lágrimas que rolavam diante da descoberta da incompreensão e da maldade de seus pares. Não havia o que fazer. Muitos recursos haviam sido tentados em vão. Aquele menino tinha mesmo seu jeito e sua hora de aprender. E não havia professora, urgência, colega, mãe, pai ou reza forte que fizesse aquela situação mudar.
Foi aí que apareceu Martina. A menina, jeitosa e inteligente, conseguiu ver mais do que suas amigas viam no atrapalhado aluno de cabelos e olhos castanhos e pele bronzeada pelo sol, nos fins de semana que passava com os pais na praia. Sim, ele tinha uma beleza peculiar. Não era como os artistas de novela, mas fazia vista. No entanto, esse atributo não era o principal. Havia algo mais. Quando chamado, tinha um jeito especial de olhar nos olhos de seus interlocutores. A atual professora também percebera isso. O menino podia não entender, mas atentava e sorvia cada palavra do que lhe era dito. Não era de se estranhar que acabasse por dar conta da situação, juntando as informações que precisava para realizar seu aprendizado.
Quando sentia-se só ou chateada com as constantes brigas de seus pais, era a ele que Martina procurava. Bastava ela começar a falar para que tivesse a sensação de que o mundo a seu redor parava para escutar-lhe. Na verdade, parado mesmo estava o guri, mas a atenção que lhe dava, a presença e a dedicação faziam com que ela sentisse o mundo inteiro a lhe escutar. Isso lhe bastava. E a encantava. Foi assim que se apaixonou. E o namoro e o primeiro beijo aconteceram muito por sua própria iniciativa, porque mesmo dedicado e atento, ele não conseguia produzir respostas imediatas.
Foi com ela, no entanto, que o garoto aprendeu a sentir. Quando sentia a emoção que a presença da garota provocava, experimentava um entendimento diferente daquele que tinha na escola, por exemplo. Quanto mais afetado pelas emoções, mais rapidamente conseguia assimilar o que lhe acontecia e produzir respostas. Através da interação com Martina, conhecera sensações e, com elas, uma nova forma de olhar e aprender sobre o mundo. As mudanças eram visíveis e foram percebidas pela professora. Testando novas formas de ensinar, ela conseguia, por vezes, alcançar seu aluno. Mas, na verdade, isso já não importava tanto. Estava há tanto tempo convivendo com aquele quase-rapaz que também aprendera a respeitar suas particularidades. Sentia-se desafiada, mas não para provar a si mesma sua capacidade de ensinar, mas para ajudar ao menino a se sentir cada vez mais parte daquele grupo onde passava grande parte de seu tempo: o dos amigos da escola.
Não demorou para que os efeitos da transformação aparecessem também em casa. A aceitação por parte de Martina, fez com que sua própria família enxergasse o menino de outra forma. E foi a partir das experiências afetivas desenvolvidas a partir dessas pequenas e grandes mudanças que o menino foi modificando também a sua forma de relacionar-se com o mundo a seu redor. Compreendia coisas banais sem muito esforço. Era como se as ideias encontrassem cada vez mais rapidamente o seu lugar. E isso tinha muito a ver em como ele sentia-se afetado pelas pessoas que o cercavam. Vivenciava o afeto, de um jeito que ainda não sabia possível. Isso fazia muita diferença.

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom! Mas acho que quem tem que continuar é você mesma. Dá para perceber o filme que o texto pode gerar, o livro na lista dos 10 mais, best-seller, a minissérie na Globo.
Vá em frente, devagar e sempre, com duas páginas por dia pode até dar para lançar nas férias de verão. E você twitta e a gente retwitta.
Sucesso.
@SilvioF

Patrícia Gonçalves disse...

Gostei! Tão meu dia a dia ultimamente, compreender as diferenças e fazê-las menores. Continue!

beijão

Mônica Alvarenga disse...

Puxa Silvio, obrigada pelo estímulo. Essa é a melhor parte de blogar, poder interagir, compartilhar...

Patrícia, minha amiga querida, essa nossa busca é contínua! Beijão.

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