domingo, junho 13, 2010

Um olhar pela vida


Ela queria escrever uma carta, como nunca fizera. Não sabia como começar; também não sabia a quem endereçar. Afinal, seu destinatário não tinha nome nem endereço conhecidos. Mas precisava escrever. Sentia-se na obrigação de agradecer aquele estranho com quem encontrara-se no corredor do supermercado, enquanto fazia as rotineiras compras semanais. A rápida conversa não foi relevante. O que houve entre ambos resumiu-se a uma troca de olhares que dispensava as palavras para estabelecer uma comunicação verdadeira. Ela não sabia como nem porque, mas o fato é que o olhar daquele estranho tocara-lhe a alma. Sentia algo muito especial e não era vontade de correr atrás do sujeito, como uma amiga sugerira-lhe depois. Era muito mais que isso e tinha a ver com o que sentia a respeito de si mesma.
Agora, encontrava-se parada em frente ao espelho. Nos últimos meses, ou talvez anos, não se recordava da última vez em que havia observado a sua imagem refletida com tanto interesse. Não era o contorno do batom ou a espessura do rímel, aplicado aos cílios diariamente, que a interessava. Era a sua alma. Via-a refletida naquele espelho, onde costumava avaliar-se vestida, sempre preocupada com as evidências do tempo sobre a circunferência da cintura. Naquele momento, tudo isso era irrelevante e ela nem conseguia deter-se nesses detalhes. Olhava a si mesma como há muito não fazia. Naquele espelho, via refletidos, por alguma estranha razão, seus desejos, sua juventude intrínseca, suas aspirações, sua alegria escondida mas resistente, sua força, suas risadas, seu medo de ter medo, seu gosto pelas coisas simples da vida, sua sofisticação desleixada, seus desencontros, seu entusiasmo adolescente... estava tudo lá.
Não entendia porque chegara assim do mercado. O que sabia era que estremecera ante o olhar do desconhecido e que, já no caixa, sentia um movimento diferente dentro de si. Perguntava-se quem era aquele homem, que poder ele detinha, mas não se importava muito com as respostas. Importava-se mesmo com o suas emoções e com o reflexo que via, agora, no espelho de casa. Como um olhar podia suscitar tanta coisa? E vindo de um estranho.
O breve diálogo entre ambos não passara de perguntas e respostas sobre a troca de prateleiras onde os pães de forma estavam dispostos. Um perguntou, o outro respondeu de forma educada. Mas o olhar daquele homem foi tão fundo e tão além. É como se ele contivesse a chave para a porta de um espaço do seu ser que há muito permanecera bem fechado e inacessível. Agora, estava tudo exposto. Derramando-se por todo lado, visível no reflexo do espelho. Sentia-se bem por redescobrir-se mulher, por rever sentimentos adormecidos. Até o medo fazia-lhe feliz. Era bom sentir qualquer coisa; sentia-se, acima de tudo, viva. Respirou fundo. Naquele momento, até a respiração tinha um efeito diferente. Era como se estivesse respirando pela primeira vez em muito tempo.
De repente, pensou naquele homem. Estava tão imersa na emoção do momento, que não cogitara o que poderia estar acontecendo com ele. Ela devolvera-lhe o olhar. Será que ele sentia o que ela sentia? Estranhamente, não havia o desejo do romance, mas um afeto. Um evento aparentemente sem importância havia lhe afetado sobremaneira. Será que o mesmo acontecera a ele? Não importava. Mesmo. Ela não desprezaria esse pequeno grande encontro.
Sentia que algo muito importante estava acontecendo a sua vida e agradecia imensamente aquele estranho e a seu olhar. Mesmo sem conhecê-lo, amava-o. Também não saberia explicar esse sentimento, onde nada importava, senão a capacidade que ambos tiveram de se afetar, ao cruzarem-se no corredor do mercado. Queria, então, escrever-lhe, mas, em seu íntimo, sabia que a única maneira de agradecer e de viver esse amor era abrir-se para tudo o que sentia e permitir-se viver cada gota das sensações que agora fluíam de todo o seu ser. Bem-vinda vida bem vivida, vida bem sentida, vida que se chama vida!

2 comentários:

Helcio Maia disse...

Vida que se chama vida!!!
Vida que se chama amor, amor que não precisa ser nominado, amor sem certezas, aamor sem bolor.
O olhar daquele homem foi o espelho, de onde a mulher ressurgiu, ponto de partida para que uma lufada de tesão pela exist~encia, por si mesma, sacudisse todo o seu ser.
O que estaria guardado, há tanto tempo, nas pratileiras de seu inconsciente? Quantos desejos sem etiqueta, fantasias fora do prazo de validade, frios e conservas mistutados à massa de desistências incondicionais.
Mas, detrás de um carrinho, as rodas do tempo movimentaram-se, entregando-a de volta ao olhar primitivo, a partir do qual tudo seria possível.

Mônica Alvarenga disse...

Obrigada pelo comentário. Acho q vc captou a essência dessa mulher. Ela, também, uma desconhecida! Acho q todos temos "desejos sem etiqueta, fantasias fora do prazo de validade...", mas, como você mesmo diz, quando as rodas do tempo se movimentam, tudo é possivel. Abraço.

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