quarta-feira, março 24, 2010

A violência nas comunidades

Há muito tempo não tinha um contato tão estreito com uma comunidade do Rio. Fui levar meu filho a mais um jogo de futebol e nada de diferente teria acontecido se não tivesse ficado mobilizada ao ver um grupo de aproximadamente 5 meninos entre 10 e 12 anos bater em um de seus colegas de muitas formas, tomando-lhe, inclusive, a bola e o skate. Na tentativa de defender o menino, intimidando a brutalidade dos demais, sentamos, eu e uma amiga, próximo ao grupo, para assistir o jogo daquele canto mais vazio da arquibancada. Ali, enquanto fingíamos estar atentas apenas ao jogo, misturamo-nos à realidade daquelas crianças e fomos nós que nos sentimos intimidadas diante da agressividade que demonstravam entre si.
O menino que apanhou deixava as lágrimas escorrerem no rosto sujo, fingindo também estar atento ao jogo. A torcida daquele pequeno grupo era tão agressiva no linguajar, na entonação e no volume da voz que o juiz veio até eles e ameaçou tirá-los da arquibancada. Sentada, ao lado daqueles garotos, experimentei o medo das ações de que aquelas crianças são capazes quando em grupos; a desesperança por perceber a falta de afeto; a esperança, porque tudo seria muito pior se a rua fosse o único espaço possível a esses meninos, que, naquela comunidade, contam há alguns anos com um centro social muito bem estruturado e com atividades esportivas, entre outras.
Depois, fui para o meio das mães que assistiam ao jogo, torcendo pelo time da casa: experimentei, novamente, o sentimento de intimidação. A agressividade estava nos gestos, nos gritos, no palavreado. E aquelas eram mulheres privilegiadas da comunidade. Estavam ali, próximas a seus filhos, acompanhando-os, uma situação provavelmente diversa das mães daquele grupo de meninos. Quando pudemos conversar, minha amiga falou: “temos que agradecer muito porque estamos longe disso tudo aqui”. Eu perguntei: “será?” Pela forma como me senti afetada, aquilo tudo faz tão parte da minha vida quanto meus amigos do outro lado da cidade. O fato de eu esquecer que essa realidade existe em muitos momentos não impede que ela invada a minha vida quando eu menos espero, seja nos sinais do Rio, em momentos como aquele em que fui à comunidade levar meu filho, ou quando ando nas ruas da Cidade.
É uma cidade partida sim, com realidades tão diferentes que, às vezes, assustam. Tenho contato com as diferenças sociais em orfanatos e abrigos que ajudo e visito, mas, nesses lugares, todos parecem resignados diante de uma condição que humilha e maltrata. No morro, naquele centro social, eu era parte do grupo e a agressividade era a forma de resposta daqueles que aprendem a sobreviver sem se resignar. Não sei o tipo de adulto que aquelas crianças serão, mas saí de lá com a certeza de que tanto quanto os pais daqueles meninos contribuo para a continuidade dessa segregação.
Ainda não sei o que fazer e, na falta de saber, fiz a única coisa que me ocorreu e que acredito ser de muita eficácia: amei aqueles meninos como amo a meus filhos. Enviei, e tenho enviado sempre que lembro de seus rostos, ondas de amor da forma como sou capaz de enviar. É muito pouco, reconheço, mas fico imaginando se todos que passam por eles nos sinais e nas ruas enviassem vibrações assim. Talvez, tornássemos a vida de todos nós menos um pouco melhor, reduzindo o abismo que nos faz ter ilusão de que vivemos em cidades distintas.
Violência nas metrópoles (publicado em O Globo, 24/03)

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